Coragem mata?
Uma homenagem a Juliana Marins — e a todas as mulheres que ousam viver com o coração, mesmo quando o mundo tenta freá-las.
Começo esse texto pensando em desistir. Já estão todos falando da morte da viajante Juliana Marins, e uma voz a mais talvez não faça diferença. “Melhor não falar nada”, penso, acreditando, por um momento, que o silêncio talvez represente melhor o vazio deixado por sua partida.
Mas, ao mesmo tempo, preciso falar. Por Juliana, que não está mais aqui para falar por si. E por tantas outras mulheres que sonham em se aventurar, viajando sozinhas, mas que podem acabar desestimuladas diante de notícias devastadoras como essa.
O dia amanheceu triste hoje. Há menos uma mulher livre caminhando pelo mundo, tendo a ousadia de realizar seus sonhos. Olho para sua foto com braços abertos e sorriso largo e me vejo nela. Me reconheço nela. Vejo a expansão que só uma viagem solo proporciona a uma jovem mulher que está se descobrindo, se conhecendo, se desafiando. Talvez, um dia, eu esbarrasse com Juliana por essas andanças. Talvez.
Vi algumas pessoas criticando quem disse “poderia ser eu”, como se essa frase tirasse o foco da Juliana e colocasse o foco sobre nós. Mas eu não vejo nenhum problema em dizer isso. Poderia ser eu, porque poderia mesmo. E, pra mim, colocar-se no lugar dela não diminui sua história, nem sua coragem de estar ali — vivendo uma experiência que poucas pessoas sequer viverão em toda a vida.
Pelo contrário: isso a aproxima ainda mais de nós. De nós, que vemos o mundo com as mesmas lentes que ela, que temos anseios parecidos. Dizer isso faz sentido pra quem entende o que levou Juliana até ali: a paisagem única lá de cima, que nos conecta com a vida e com a natureza; o desafio pessoal de superar limites; a vontade genuína de criar uma memória que perdure para sempre.
Por outro lado, aqueles que não entendem, aqueles que têm medo de viver — e se protegem entre muros criando uma falsa sensação de controle - sempre vão arrumar uma forma de culpar os que se atrevem e vivem. Infelizmente, há muitas pessoas condenando a coragem de Juliana como se esse fosse o perigo. “O que ela estava fazendo ali?” "Não devia estar viajando sozinha.” “Se estivesse em casa isso não teria acontecido.”
Ironicamente, hoje, 25 de junho, meu primo João Vitor faria 36 anos. Ele faleceu há um mês, de forma repentina, dentro de casa, nos braços da mãe. Segundo os médicos, uma infecção de garganta atingiu o coração e causou uma miocardite. Não, ele não tinha nenhum problema de saúde.
A vida é imprevisível. E não importa se estamos no alto de um vulcão ou no aconchego do nosso lar: o fim chega, sem aviso.
Por isso, não, não é a coragem que mata. Na verdade, ela amplia a vida. Como disse Anaïs Nin, “a vida se expande ou se encolhe de acordo com a nossa coragem.”
As melhores coisas da minha vida custaram a minha coragem. Aliás, as melhores experiências que vivi aconteceram a partir do momento em que fiz as malas e fui viajar sozinha. Esse movimento mudou o rumo da minha vida e eu não seria tão realizada em tantos sentidos se não tivesse enfrentado meus medos e dado esse primeiro passo.
Culpar a coragem apenas reforça um sistema que quer nos manter oprimidas, encolhidas, que não quer nossos corpos livres ocupando espaços na vida e no mundo. Será que, se fosse um homem no lugar da Juliana, ele seria questionado sobre o que fazia ali? Ou a discussão ficaria voltada apenas para o perigo da trilha e o ciclo absurdo de negligência que já sabemos e nem preciso falar aqui?
Em 2023, quebrei o ombro enquanto estava totalmente sozinha, e sem guias, em uma cachoeira em Paraty-Rj. Fiquei presa no local e vivi algumas horas de horror achando que não conseguiria sair. Foi um episódio traumático, que me ensinou muito, mas não chega nem perto dos quatro dias de abandono, dor, sede, fome e frio e sabe-se o que lá mais Juliana sentiu, enquanto aguardava resgate no vulcão.
Ao contrário de mim, que estava sem guia em um local vazio, Juliana contratou uma empresa acreditando que, assim, estaria segura. Ao contrário de mim, Juliana não pôde voltar para contar sua história de superação.
No meu relato, conto que aprendi muito sobre a importância de ter cuidado e preservar a minha vida viajando pelo mundo. É claro que, sim, devemos ter cautela. Mas ser prudente é bem diferente de se trancar dentro do medo, de se fechar pra vida e silenciar sonhos para não correr riscos.
Juliana não fez isso. Ela escolheu viver. E é triste que o óbvio tenha que ser dito: ela não morreu por um erro dela, tampouco pela queda que sofreu. Como sabemos, deixaram ela morrer.
Coragem não é imprudência , coragem é resistência. Como a própria etimologia da palavra revela, vem do latim coraticum, que significa “ação do coração” ou “aquilo que vem do coração”. Coragem é isso: seguir o caminho daquilo que pulsa dentro de nós.
O medo, por outro lado, não é caminho, pois não leva a lugar algum. É só uma proteção. Dessas que até parecem nos guardar, mas que também nos afastam da vida, nos afastam de nós.
Qual tem sido o seu guia? Fico feliz de fazer parte do time da Juliana — que segue com o coração, mesmo quando isso assusta o mundo.
Juliana Marins. Que possamos carregar sua lembrança não pelo desfecho dessa história, mas pela força do seu passo. Que seu nome ecoe não como um alerta, mas como um símbolo. Que Juliana seja lembrada por sua coragem, seu espírito livre e por ter ousado viver uma vida que fazia sentido para ela.
Com amor e sentindo muito,
Renata Stuart