Pipoca, dores e amores
Uma crônica sobre a perda da inocência, filmes esquecidos e lições que ficam
Antigamente, para mim, pipoca era só pra ocasião especial. Coisa de cinema ou uma reunião de amigas para ver a sessão da tarde nas férias. Perdi a conta de quantas vezes fui ao cinema só por causa da pipoca. Pouco importava o filme ou os beijos no escuro. Claro que eu não revelava essa parte aos meus romances da adolescência, pois isso entregaria o quanto sou gulosa. Mas eles certamente percebiam, já que o balde se esvaziava ainda no trailer.
Hoje em dia, é diferente. Não preciso me arrumar e sair de casa para me deliciar. Tenho várias desculpas para comer pipoca, ainda que não precise delas. Quando a fome é pouca e a preguiça é muita. Quando já é tarde, falta energia e quero comer algo leve.
É coisa que gosto de ter na despensa, só para estourar a rotina que anda arrastada. De repente, num dia de semana qualquer, faço uma pipoquinha, e BUM, a vida já não parece tão complicada, eu já não pareço tão exausta, a semana já não parece tão longa.
Seja para assistir a um episódio de uma série no sofá, ler um livro ou conversar por vídeo com aquela amiga que mora longe. Comer pipoca a qualquer hora é como jogar uma dose de manteiga no trivial, e se deliciar. Algo como criar um sábado dentro de uma quarta-feira.
Tem pra todo gosto, momento e humor. Pode ser clássica, só com sal e manteiga, ou ganhar um toque inventivo com queijo ralado, páprica ou ervas finas. Há quem prefira as versões açucaradas e caramelizadas ou até mesmo regadas com calda de chocolate ou brigadeiro, como uma amiga me apresentou recentemente.
Mas meu caso com a pipoca vai além do paladar, tem gosto de memória e um quê de magia. O cheiro de cinema me teletransporta imediatamente para um tempo em que tudo parecia ser simples e possível. Uma época em que nem mesmo os mais assustadores filmes de terror me davam medo. Ou até davam, mas eu me sentia super corajosa por enfrentá-los. Se a cena parecia pesada demais, eu fechava um olho, comia uma pipoca, e ficava tudo bem.
Me lembro da primeira vez em que fui ao cinema sozinha, aos 22 anos, e me deleitei com um balde inteirinho só pra mim. Não lembro do nome do filme, provavelmente porque a principal motivação foi a pipoca. Na época, eu estava em uma relação há 5 anos, com meu primeiro namorado sério. Mas ele não quis me acompanhar, disse que não gostava do filme e preferiu ficar jogando vídeo game com meu pai. “Tudo bem, eu vou sozinha”, uma parte de mim respondeu com firmeza, antes mesmo de pensar.
A essa altura, nossa relação já andava estranha, meio pipoca sem sal. Eu já sentia esse incômodo, mas achava que devia ser apenas uma fase e evitava pensar sobre. Não estava pronta para abandonar a ideia do “felizes para sempre” que cultivei por tantos anos na minha mente.
Entrei na fila, comprei meu ingresso, meu enorme balde de pipoca, um drops de bala Fruittella e um copo de coca-cola. A moça do caixa me perguntou: “Apenas uma bebida?” Respondi que sim. E foi então que me dei conta que, ao meu redor, só havia casais e grupos de amigos. Me senti meio deslocada e atravessada por um breve sentimento de autopiedade, mas ignorei.
Me sentei numa poltrona no centro da sala e, quando as luzes se apagaram, foi como se eu tivesse entrado num mundo só meu. No meio do filme, me lembro da sensação de me enxergar de fora, e me ver ali, sozinha e feliz, com o balde de pipoca já vazio, mas cheia de mim - no bom sentido.
Cheia de vontade de me levar para sair para outros lugares, outras esquinas, outras possibilidades. Ainda que não estivesse procurando nada especial, naquela tarde de sábado, acabei encontrando algo ainda mais delicioso que pipoca: o prazer da minha própria companhia.
“Do que mais você gosta de fazer? Me conta! Eu te levo.” Pensei comigo mesma.
Era como se tivesse desbloqueado uma chave nova dentro de mim. Até então, nunca tinha me olhado daquela perspectiva, nem cogitado de verdade cultivar um relacionamento comigo mesma.
Mas ainda era só uma menina. Uma menina cheia de sonhos, inocência e encantamento, iniciando sua caminhada de se tornar uma mulher. Só conhecia o lado doce de tudo: da vida, das pessoas e de si mesma. Ainda precisaria desistir da ideia do príncipe encantado e de uma fada madrinha que, em algum momento, lhe estenderia um tapete vermelho em direção a vida dos seus sonhos. Ainda precisaria atravessar cavernas escuras dentro de si para encontrar o próprio tesouro.
Parafraseando o grande Rubem Alves, ainda precisaria passar pelo fogo da transformação para deixar de ser milho e se tornar pipoca.
Seis anos depois, com 28 anos, lá estava eu, naquela mesma sala de cinema - mais vivida, mais atrevida, depois de se libertar de amarras, morar fora e voltar - mas acompanhada de um novo namorado: dessa vez, sim, um amor amanteigado, intenso, ou “avassalador”, como diziam.
Ele era alto, com um ar de misterioso e aquele jeitão encantador, desses que atraem olhares por toda parte. Mas, desde o início, agia como quem faz questão de mostrar que estava entregue a mim.
Nos conhecemos um mês antes, numa festa de pré-Carnaval, 24 horas antes de oficialmente começar a folia. Ironicamente, usava uma coroa dourada que alguém lhe havia emprestado. Enquanto a gente dançava, me lembro de perguntar: “será que é sapo ou príncipe?” Nos beijamos, e nos dias seguintes, pulamos o carnaval todo juntos, eu, ele, e uma caixa de isopor com nossos drinks - o próprio conto de fadas da vida real.
Voltando à sala de cinema, ao final do filme, quando os créditos começaram a subir, continuamos sentados, prolongando aquele momento de silêncio, esperando todos saírem da sala. Até que a última mulher da sala se levantou e passou bem na nossa frente — loira, de cabelos soltos, um vestido justo que desenhava seu corpo e saltos que ecoavam no chão da sala vazia. Ele acompanhou cada passo dela com os olhos, sem piscar, encarando-a dos pés a cabeça, sem sequer disfarçar, como se eu não estivesse ali.
Me senti mal. Não que ele não pudesse olhar para o lado - não me entenda mal - olhar é natural, quase automático. Outra coisa bem diferente é se perder no olhar e me constranger. Nunca havia lidado com nada parecido, e logo manifestei meu incômodo. Ele revirou os olhos e me convenceu de que eu estava imaginado tudo, que aquilo não fazia o menor sentido. “Você é louca, eu nem olhei”, ele disse.
depois de um clima sei lá se tenso ou confuso ou os dois ou nenhum e uma discussão que foi ou começou ou só continuou ou virou só um monte de palavras misturadas e eu já não sabia se eu tinha dito algo ou só pensado se tinha sentido ou se era coisa da minha cabeça e daí eu achei que era mesmo que eu tinha inventado tudo porque talvez fosse mesmo só exagero ou paranoia ou não sei eu só sei que no fim eu cansei e acreditei no que ele disse eu devia estar louca mesmo para duvidar do seu respeito por mim
Acreditei nele e acabei pedindo desculpas, ainda que aquelas palavras que saíram da minha boca tivessem retornado secas, entalando minha garganta. Como se, lá no fundo, eu soubesse que algo estivesse muito errado.
Os sinais foram se acendendo como luzes vermelhas em sequência, cada vez mais claros, cada vez mais perturbadores. Palavras que machucavam, culpa constante que grudava na pele, uma confusão que embaralhava o que era certo e o que era invenção da minha cabeça. As ameaças de abandono vinham como tropeços, me fazendo andar sempre na ponta dos pés. A fantasia que eu havia construído foi perdendo cor, até virar só um rascunho borrado.
“Era sapo, sempre foi sapo.”, pensei, quando decidi dar um basta em nosso segundo mês juntos.
Felizmente, antes que aquilo pudesse se estender em temporadas trágicas, fui embora. Sem despedidas, sem cena final, sem esperar os créditos subirem. Deixei para trás o que hoje enxergo como um capítulo sombrio na minha vida, tipo um filme ruim que ficou esquecido, mas deixou uma lição profundamente importante.
Eu havia, finalmente, passado pelo fogo. Deixei de ser milho e me tornei pipoca. Fogo que me tirou o sapatinho de cristal da inocência à força e me fez selvagem. Selvagem o bastante para me defender com garras, unhas e dentes. Nem presa, nem predadora, apenas consciente.
Olhos abertos, intuição despertada, véu da ilusão queimado. Ali, entendi: o amor não floresce no mesmo lugar que nos adoece. Em algum momento, é preciso pular da panela quente, antes que seja tarde.
Entre a dor de me perder e a dor de lidar com a transformação, escolhi a segunda.
Os capítulos que vieram a seguir não foram fáceis. Por um bom tempo, me isolei dentro da minha própria concha. Não apenas para fugir da dor, mas principalmente para ficar, cara a cara, com os buracos vazios que eu insistia em esconder. Me desfiz de expectativas irreais que ainda ecoavam em mim e, pouco a pouco, aprendi a abastecer o meu próprio tanque de amor. Não com distrações ou promessas vazias, mas com presença, comigo e para mim.
Não me quebrei, nem me fechei. Pelo contrário, conquistei algo ainda maior: aquele relacionamento verdadeiro comigo mesma que, lá atrás, na minha primeira ida sozinha ao cinema, eu começava a desejar.
Anos depois, pipocando por aí em busca de mais viagens e liberdade, esbarrei com aquele que viria a se tornar meu companheiro, com quem estou há 3 anos e 4 meses. Um amor que me faz chorar muito, só que de rir — e que é sempre uma boa companhia para dividir pipocas, conversas profundas e silêncios.
Nos conhecemos fazendo aquilo que mais amamos: explorando o mundo. Ele com a câmera pendurada no peito, eu com um caderninho nas mãos. E então, sem pressa e quase sem perceber, juntamos as mochilas e fizemos da estrada a nossa casa.
Curiosamente, nossa primeira e única ida ao cinema até hoje aconteceu na pior sala que já conheci, em La Paz, na Bolívia. O espaço era pequeno, a imagem do telão não tinha nitidez, e o áudio, abafado. No meio da sessão, o filme parou e tiveram que rebobinar. Caímos na risada. “É, amor, programas normais não gostam da gente”, ele disse, lembrando que nossas aventuras sempre fogem do óbvio. Mais uma vez, quem salvou o programa foi ela: a pipoca.
Nossas sessões de filme costumam ser em “casa”, que na verdade é onde quer que a gente esteja. Enquanto escolho o filme, ele estoura o milho. E na hora de servir, é cada um com seu balde — ele se recusa a dividir comigo.
Segundo ele, eu meto a mão, pego um punhado e jogo logo umas cinco na boca de uma vez, enquanto ele come uma por uma e acaba ficando no prejuízo. “Divido a vida com você, amor, mas a pipoca não”, ele brincou outro dia. Não nego. A pipoca revela meu lado mais primitivo. Meus crushes da adolescência deviam pensar o mesmo, só não falavam.
Acho que a vida tem muito a ver com pipoca. Uma dança entre explosão e leveza, estalos e silêncios. Às vezes, doce e açucarada; outras, salgada, bem temperada. E quando tudo parece meio sem gosto, sempre dá pra mudar com uma pitada de coragem, uma nova escolha, um novo começo.
Porque bom mesmo é viver com o balde cheio, lambendo os dedos, sem aceitar grãos mirrados e, acima de tudo, aprendendo a sair saltitando dos lugares que nos sufocam.
Com amor,
Renata Stuart
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Amei!
Mais uma vez, pude aprender bastante com sua historia!