Amo a vida, mas penso mais na morte do que gostaria.
Uma crônica sobre o luto, a nossa fragilidade e a urgência em amar
Aconteceu de novo.
Ela invadiu a sala, puxou uma cadeira e disse: eu existo, estou aqui e não avisei que vinha.
É certo que a morte nunca avisa quando vai chegar. Ela simplesmente aparece — desorganizando tudo, por dentro e por fora. Mas às vezes, ela surpreende de forma ainda mais cruel, especialmente quando leva alguém jovem, saudável, que acordou numa segunda-feira de manhã com a confiança quase inabalável de que voltaria para casa no fim do dia.
Ele comeu ovos mexidos com manteiga, fez o café coado e bebeu devagar, enquanto lia algumas páginas de um livro que jurava terminar em poucos dias. Saiu para trabalhar, almoçou com os colegas, deu risadas sobre assuntos triviais, fez planos para o fim de semana.
No fim do dia, passou na casa da mãe, como fazia toda semana. Conversaram sobre o dia e trocaram um abraço despretensioso — sem saber que seria o último. O último abraço dos últimos 35 anos.
No final do último mês, perdi meu primo João Vitor. Eu digo primo porque a palavra amigo chega a ser pequena para o que a gente tinha. Graças à amizade de nossas mães, crescemos juntos: eu, meus irmãos, ele e os irmãos dele.
Compartilhamos a inocência da infância, as travessuras da adolescência, os tropeços do início da vida adulta. Mas nos últimos anos, a gente se via e se falava menos. A tal da “correria”, acoplada à distância e à falta de tempo que a gente naturaliza com uma facilidade assustadora nos dias de hoje.
Em 2024, nos reaproximamos, graças a uma grande festa de aniversário que minha mãe fez para celebrar seus 60 anos.
—“Que saudades eu estava de vocês, João! Como é bom perceber que nada mudou entre nós! Precisamos nos ver mais, lembrar dos velhos tempos", eu disse.
E o encontro aconteceu. Uma semana antes da minha viagem de seis meses para a Ásia, nos reunimos na casa da minha irmã. Ele me contou que estava apaixonado por seu namorado, que morava no Rio. Falou da parceria gostosa que tinham, mostrou fotos da sua gata. Conversamos sobre sobre o amor, sobre a vida, sobre os tempos sombrios da pandemia. No final, ele brincou que me visitaria na Tailândia.
Os meses se passaram. “Olha que eu vou, hein”, respondeu ele pelos stories quando postei a foto de uma praia paradisíaca. “João, amo seus stories, são tão espontâneos”, escrevi outro dia, com muitos emojis de risos, depois de ver um dos seus dilemas divertidos do cotidiano, sempre compartilhados com uma autenticidade louvável.
No dia 15 de abril, veio a notícia da parada cardíaca. Foi nos braços da mãe — antes de voltar para casa, após um dia comum de trabalho — que ele fechou os olhos. Assim. Do nada. Sem nenhum histórico de problema no coração. Como se alguém tivesse simplesmente desligado.
Foram mais de 30 minutos sem circulação até o primeiro atendimento. Estado grave. Quase dez dias internado, sem acordar, sem reagir, sem abrir os olhos.
Eu estava na Índia, do outro lado do mundo, na metade de uma formação de Yoga de um mês. Era um momento feliz, onde eu realizava um sonho muito aguardado, mas que ganhou cores cinzas a partir desta notícia.
Fui convidada pela vida a sustentar o desconforto da dor, enquanto assistia aulas de filosofia, meditação e técnicas de respiração. E lembrei que a vida é exatamente essa dualidade: algo devastador pode acontecer junto com algo maravilhoso.
Apesar da vontade de me enfiar dentro de uma concha e ficar imóvel, escolhi seguir presente. Durante o dia, comparecia às aulas, fazia as práticas, sorria para as pessoas da turma, trocava palavras gentis e até me divertia em certos momentos. Era como se eu vestisse uma pele para seguir em frente — mesmo quando tudo dentro de mim só queria parar.
À noite, no entanto, voltava para o meu quarto, sozinha. Lá, a realidade me esperava. Buscava notícias dele, falava com a família e fazia orações tentando negociar com um destino que já parecia escrito.
Em algumas noites, me permitia sentir e desaguar. Em outras, me anestesiava em duas horas de rolagem de tela, como quem procura no mundo externo uma pausa para o que se passa dentro. Tive dificuldade para dormir. Acordava assustada, com o coração disparado, como se a incerteza da vida gritasse alto, despertando fantasmas que nunca me deixaram.
Uma semana depois, a confirmação: João não acordaria daquilo que parecia ser apenas um sono tranquilo. O corpo estava vivo, em perfeito estado, mas o cérebro já não respondia.
Logo ele, que semanas antes havia enviado uma mensagem para sua mãe dizendo que gostaria de ser doador de órgãos, caso morresse.
— “Para com esse papo, meu filho.”
— “Mas, mãe, precisamos falar sobre essas coisas.”
Os mistérios da vida. Os presságios da morte.
Logo ele, que era tão cheio de vida. Tão apaixonado por viver.
Talvez esse era nosso maior ponto em comum: sou uma amante da vida assumida.
No entanto, preciso confessar algo que talvez soe mórbido: apesar de amar a vida, penso mais na morte do que gostaria.
Será que ela sabe? Será que a morte sabe que, toda vez que ela chega assim, escancarando nossa fragilidade com tanta força, ela toca em feridas que eu ainda não fechei? Feridas que me acompanham desde a perda do meu irmão, quando ele tinha 15 anos?
O coração acelera quando ligo para minha mãe seguidas vezes e ela não atende.
Ou quando meu pai liga fora de hora — afinal, ele quase nunca liga.
Quando recebo uma mensagem do tipo: “preciso falar com você, me liga”.
A garganta seca. O corpo gela.
Nesses breves segundos de pânico, lá no fundo da minha mente, consigo escutar o sussurro desse medo que guardo secretamente: será ela? é mais um dia daqueles? chegou o novo pior dia da minha vida?
Não tenho exatamente medo da morte. Da transição desse plano para outro. Uma parte de mim — meu eu “mais elevado” — aceita a finitude da vida, do jeito que ela é, e entende que é exatamente isso que a torna mágica.
Tenho medo mesmo é de não aguentar as pancadas que ela traz. Meu eu “menos elevado”, mais apegado a essa experiência, não sabe lidar tão bem.
Tenho medo dos vales escuros que ela abre dentro de mim. Medo de um dia não conseguir sair de um desses vales. Medo da ausência agressiva que esse corte brusco gera em nós. Ou até mesmo medo de partir — mas só porque isso partiria ainda mais o coração de uma mãe que já enterrou um filho.
João se foi. E agora tem uma pessoa a menos no mundo que eu tinha certeza que me amava. Num mundo onde as conexões reais estão se perdendo, quem perde uma, perde muito.
Depois a gente combina. Amanhã eu ligo. Qualquer hora eu vou. Um dia eu falo. Vivemos correndo, tantas vezes sem nem saber pelo que corremos. Adiamos o que realmente é essencial em prol de afazeres disfarçados de importantes. Em função de um futuro que sabemos não ser garantido. Tantas vezes nos isolamos em nossas próprias bolhas e nos contentamos em apenas assistir o avatar de quem amamos.
E quando acaba, como é que se recupera o não vivido, o não dito?
Foi difícil não pensar no quanto perdi por não ter tido convivido com o João nos últimos anos. Quantas risadas, quanto apoio, quanta leveza eu perdi por não ter estado mais perto, mais presente. Quantas novas nuances de sua personalidade dele eu deixei de conhecer. Foi difícil não pensar se ele sabia ao certo o tanto que eu o admirava e amava, simplesmente por ele ser quem era.
—“Será que deixei claro?”
Busquei mensagens antigas, escutei aúdios enviados, resgatei interações das redes sociais. Gostaria de ter dito mais. Mas eu jurava que teria mais tempo. A gente sempre acha que tem.
Não sou a melhor pessoa com datas de aniversário, confesso. Mas tudo isso me fez pensar no valor imenso que têm os votos de parabéns — aqueles que damos uma vez ao ano às pessoas que amamos e, tantas vezes, não conseguimos encontrar.
No meio da vida corrida, aquele número no calendário nos instiga a parar, nem que seja por alguns segundos, para homenagear a existência de alguém que importa pra gente.
Se a morte não tem data, talvez o dia em que se celebra a vida de alguém seja o momento ideal para dizermos tudo aquilo que vamos desejar ter dito quando já não for mais possível.
Ou talvez hoje seja um bom dia. Agora. Este momento.
Com amor,
Renata Stuart
Se essa for sua primeira vez por aqui e estiver me lendo pelo Substack, fica o convite para se inscrever e me deixar ocupar um cantinho aí no seu mundo. ✨
Sinto muito pela sua perda, de verdade. E olha… você conseguiu colocar em palavras exatamente o que eu tô sentindo. Desde que perdi minha madrinha e minha vó, nada mais parece igual. Vivo com medo. Meu pai é caminhoneiro, tá sempre na estrada sozinho… toda vez que chega uma mensagem dele fora de um horário “normal”, meu coração congela. Quando ele me liga e eu penso em não atender porque tô vendo um filme, já vem aquele pensamento: “e se for a última vez?”. Minha mãe começa a tossir e eu já penso no pior, fico em pânico achando que pode ser alguma doença séria.
Eu não tenho medo de morrer, sabe? Nem um pouco. O que me apavora mesmo é ter que passar pelo luto de novo. Sentir esse buraco, essa ausência absurda. Isso me quebra
Que texto dolorido e ao mesmo tempo tão cheio de realidade. Sinto muito, querida. O relógio da nossa "estadia" é implacável. E a incerteza dele urge que aproveitemos o milagre de permanecer pelo tempo que sequer sabemos qual é. A vida e seus mistérios precioso e dilacerantes.